terça-feira, 20 de junho de 2017

Inconveniente

Quando começo o programa da rádio já deixo as regras claras, as perguntas são recebidas in box a partir das quartas-feiras,podendo durante o programa haver transbordo ou fila enorme que impedi-nos de aceitar novas perguntas ao vivo.
Outra regra básica é não solicitamos dados pessoais como data de nascimento ou nome completo. Proibimos as perguntas em nome de terceiros e mais de uma pergunta por noite.
Já desisti de escrever que as questões devem ser claras, objetivas, curtas, sem rodeios e rápidas. E também desisti de falar que não precisa agradecer na hora, pois acabando gerando telas extras e desnecessárias de bate-papo em meu facebook, enquanto anoto e organiza a fila.
Outra regra essencial é informar o local de onde se envia a pergunta (cidade, estado ou país) e, principalmente qual o pseudônimo anunciar nos casos que a pessoa não quer se identificada durante a gravação.
Rigorosamente e condizente com as regras gerais recentemente me agarrei no ódio que nada nem ninguém podiam trazer sossego, repetidas vezes disse não, aquela sujeita que insistia nos últimos quinze minutos da prorrogação exigir uma reposta para terceiros, e acabou passando por cima de mim como se uma força maior fosse poupa-la, mandou seu marido entregar um bilhete ao vidente, que por práxis pediu que eu resolvesse.
Por uns instantes meu perigoso lado branco espalhou por mim o fel nas veias, brio nos olhos ardentes, os lábios secos tremendo, a cabeça zunindo com palavrões e xingamentos ressoando...
Queria rasgar o papel, colocar fogo no estúdio e por fim ao que não tinha que ter chegado ali ao paranormal na entrevista que me concedia na rádio, mas por equilíbrio destinei à pergunta ao último lugar da fila: sem força, sem desejo, sem vontade e sem pensar.
Fazer a pergunta foi um golpe de misericórdia, antes de reler as palavras do bate-papo da inconveniente, da insurgente e da divergente. Seus motivos e por menores não me afetavam e não continham palavras mágicas como: por favor, por gentileza e por obsequio...
Para variar tratavam de uma longa história com rodeios, sem clareza, sem lógica, longa por demais, sem objetividade... Infelizmente, as pessoas não sabem esperar e tem a ousadia de dizer que “as perguntas alheias são banais”, para que sua urgência não seja qualificada para os camarins, as coxias, os bastidores e os particulares.
Devia ter deixado para o depois do programa e assim dar toda atenção do paranormal e até mais recursos, mas ainda o diabinho me provou...
Alguém me disse uma vez que meu silêncio é o pior castigo que posso dar as pessoas, pois se ainda estou discutindo com alguém e por que ainda me importo com a pessoa de alguma forma...
Depois de tudo terminado, a deslegante dona da rádio saiu com seu carro e me deu o prazer de excluir sua existência dos meus sistemas... Não posso mudar o que houve e não quero, mas posso fazer diferente e em outro lugar.



Jorge Barboza
Escritor e Colunista Social

sábado, 10 de junho de 2017

Quando tudo der errado leia José Eduardo Agualusa

Tenho medo de ligar o rádio, como quem entra no metrô à hora de rush e de pico, e de que por descaso ou por maledicência alguém me pise a inteligência: “foi sem querer, desculpe-me”. Ligo o som, escondido no meu canto, encolhido como quem nem está ali, mas se por acaso os meus ouvidos tropeçam em alguma voz agressiva, desligo logo.
A seguir fecho os olhos e sonho um equino. Foi um velho capataz angolano quem me ensinou isto. Eu estava sentado nas areias de Luanda, com um caderno nos joelhos, concluindo contos. Ele veio por trás e ficou um momento observando:
- Por que faz isso? – perguntou. – A história não cabe aí!
Sentou-se ao meu lado. Disse-me que às vezes, ao dormir, lhe doía, do lado direito da cabeça, a lógica. Caminhava então até à praia, estendia-se de costas na areia, e sonhava um equino.
- Foi José Eduardo Agualusa, sabe? Ele me introduziu.
Nessa altura não compreendia quem o capataz se referia. Começou por sonhar pequenos potrinhos, muito rudimentares, só um veloz traço de castanho, só um ligeiro arco correndo no ar, mas com o tempo, à medida que desenvolvia a técnica, passou a sonhar jumentos, burros, inclusive pôneis. A ambição dele era sonhar um cavalo árabe preto.
            - Esteja atento à cor dos campos – preveniu-me. - Por exemplo, de manhã, bem cedinho, se o campo estiver liso e dourado, é bom para sonhar um pônei. O puro sangue inglês, que é um cavalo famoso pelas corridas, grande, se sonha muito bem depois que chove, e a lama anoitece a terra. Já os quartos de milha são melhor sonhados quando o vento é forte como os saltos destes belíssimos equinos.
E os centauros? Ele olhou-me atônito:
            - Centauros? Servem para alguma coisa? Centauros são animais mal sonhados, como os monotrêmatos (equidna e ornitorrinco), os pégasos ou os unicórnios. Você pode conseguir fazer bichos melhores.
Venho tentando. Nunca soube o nome do velho. Era um sujeito mediano, tranquilo como uma floresta, de olhos calmos e uma pele reluzente e clara, esticada bem sobre os ossos. Tinha uma voz tão aconchegante que, à manhã, enquanto falava, soava como brisa marinha. Uma voz daquelas devia poder transmitir-se em canções. A mim fazia-me lembrar a de Djavan.
Dizia-se naquela cidade que o capataz estivera duas semanas perdido no deserto. Salvara-se por milagre, porque ao sétimo dia São Jorge lhe apareceu nas dunas, trazendo nas mãos um frango assado e dois litros de guaraná. Ele próprio me desmentiu o milagre, até um pouco irritado:
- São Jorge?! Santo, rapaz? Quem me apareceu foi José Eduardo Agualusa.
Em todas as histórias de viajantes há sempre exageros, por vezes até mentiras inaceitáveis, ou não seriam mirabolantes. Neste momento, porém, sou ateu – uso esta palavra pela primeira vez na vida; não veem que brilha? – ele lia! Era um grande devoto de José Eduardo Agualusa e Ondjaki. Contou-me que José apareceu-lhe de tarde, trazendo nas mãos o Manual Prático de Levitação, e lhe leu o livro inteiro.
Logo depois que o achou mais recomposto, ensinou-o a sonhar equinos.
- Sonhar cavalos faz bem à alma. Lembre-se que por cada homem mau no mundo há no continente mil cavalos bons.
O meu capataz não tinha rádio. Às vezes acontecia demorar-se numa padaria, ou no boteco (havia um rádio na padaria), e o ecos das guerras alheias roubava-lhe a paz. Ele sofria com as guerras alheias. Andava pela cidade com o livro “Vendedor de Passados” debaixo do braço, tentando, sem sucesso, converter os demais. Só eu lhe dava atenção:
- Quando tudo der errado leia José Eduardo Agualusa.
Uma noite vi-o sonhar um cavalo mustang preto.
- Foi o meu primeiro grande equino – disse-me depois, exausto pelo esforço, para a semana vou tentar um quarto de milha.
Nunca mais voltei a Luanda, nunca mais o vi, mas calculo que por esta altura ele já tenha conseguido sonhar o seu Cavalo Árabe Negro. Já o deve ter lançado aos montes, estradas, campos verdes de puro sonho, e a corrida dele há de estar ressoando num ritmado trote. Um dia os cavalos virão para salvar os homens sem sono e sem sonhos.


           
            Jorge Barboza

Escritor e Colunista Social